
(Foto: Reprodução/HBO Max)
De uns tempos para cá, o discurso do amor próprio, do autocuidado e todas essas questões centradas na autoajuda ganharam muita força na internet. O movimento do corpo livre, body positive e a aceitação se transformaram em pautas recorrentes e muitas mulheres encontraram conforto nesse novo lugar. Até o momento em que ele virou uma forma de ditadura também – dadas às devidas proporções.
(Essa é, possivelmente e até agora, a coluna mais difícil de escrever, mas seria impossível passar por essa cena e não lembrar, e não falar.)
No segundo episódio da segunda temporada de Euphoria, Kat, personagem interpretada pela atriz Barbie Ferreira, está deprimida e começa a receber sermões de figuras conhecidas pelo discurso de seja forte, quebre os padrões, se ame e tudo mais, enquanto ela tenta, aos berros, justificar que é muito difícil, que às vezes falta força e que o auto-ódio é tão real quanto essa onda de autoamor.
Não lembro quando comecei a odiar meu corpo, ou melhor, não lembro de em algum momento realmente aceitá-lo como ele era. Sempre me senti alta demais, com coxas demais, com barriga demais… O histórico de amigas magras nunca me ajudou muito, e eu sei que não é culpa de nenhuma delas, inclusive.
O bullying também nunca foi um aliado, as risadas, as piadas, tudo parecia inofensivo até eu me dar conta do estrago. E eu nunca fui gorda. Nem mesmo agora, no meu maior peso, eu me considero uma pessoa gorda. Eu tenho um corpo fora do padrão. 75 quilos distribuídos em 1,65 de altura, acumulados principalmente em coxa, bunda, buchinho e peitos.
Hoje, mesmo tendo mais consciência, informação e o tal do amor próprio, ainda tem dias que são difíceis de se encarar no espelho. E haja terapia, porque não é uma questão de peso, de balança. O buraco é muito mais embaixo.
Eu nunca desenvolvi um transtorno alimentar, mas eu sempre convivi com ele pairando na minha mente. Por volta dos 12 anos foi a primeira vez, que eu lembro, que comi alguma coisa pensando em vomitar em seguida, porque aquilo ia me engordar. Aos 12 anos. Apesar de todo o meu amor pelo que as revistas adolescentes me proporcionaram, foi também muito a partir delas que entrei em contato com padrões irreais de corpos.
E também foi desde essa idade que eu passei a encarar o espelho de um jeito diferente. Sempre maior do que estava, sempre querendo ser diferente. E isso foi uma coisa que eu só reparei que fazia parte de mim depois de muitos anos, revendo fotos antigas e pensando no quanto eu queria, hoje, o corpo daquela Beatriz de anos atrás que, na época, não era feliz com o que tinha. O ciclo vicioso da insatisfação – e as redes sociais, a televisão e o dia a dia só potencializam isso.
Até hoje, lidar com meu próprio corpo ainda é um desafio. Tem dias de muito amor e aceitação, de acolhimento e de respeito. Enquanto existem os dias em que eu só queria ter vindo em outro corpo, é difícil se olhar no espelho e a autoestima se esconde em algum lugar sombrio. Com isso, surgem as doses de insuficiência e é tudo um efeito dominó para uma série de outros gatilhos.
Com a terapia e todo o meu processo pessoal de autoconhecimento, reconheço hoje o quanto essa questão de aceitação atrapalhou e ainda atrapalha a minha vida. Em vários aspectos. Nunca esqueço que durante o ensino médio, em um passeio do colégio, eu menti para não ter que ficar de biquíni junto dos meus amigos e amigas. Deixei de curtir um dia na piscina, porque no lugar de entrar e sair da água estava sem escada e os meninos estavam suspendendo as meninas, e a ideia de algum deles zoar ou dizer, por exemplo, que não me aguentaria seria a morte. Hoje, parte de mim diz que não faria isso jamais, mas nem sei se consigo garantir.
Nos meus relacionamentos, na minha sexualidade (ou expressão dela, sei lá), o corpo sempre foi e é uma questão. Tento me sentir bem com ele, não me envergonhar, mas quase sempre o fator padrão me dói. Não vou mentir, tudo seria mais fácil se eu fosse magra. Ah, outra questão aqui é que é muito difícil aceitar também que merece ser amada e isso acaba sendo uma porta de entrada para relações falidas, seguindo o famigerado "aceitamos o amor que achamos merecer" e é por isso também que é custoso de acreditar quando alguém tem um interesse genuíno em você, da afeição ao desejo.
Ah, mas por que você não emagrece? Porque eu não quero e não vou fazer isso pelas razões erradas. Eu já quis perder muito mais quilos do que minha saúde permitiria, então eu sei que esse é um gatilho que eu preciso ter cuidado. Eu sou saudável, acima de qualquer coisa, e isso é o mais importante. Esse meu corpo suportou tantas coisas que algumas eu não sou capaz nem de dizer, ele tem sobrevivido a uma pandemia, ele tem me permitido trabalhar e andar por aí para contar histórias. Eu não tenho dúvidas do quanto eu o amo e sou grata por ele, mas é muito difícil.
E acho que é isso que eu quero dizer hoje. O que eu (me) reconheci na cena da Kat/Barbie em Euphoria. A gente tem consciência de uma porção de coisas, mas quebrar o padrão, amar o que é diferente e o que uma série de pessoas te dizem que é errado é muito complicado. É difícil e extremamente doloroso na maior parte do tempo.
Diferente da Kat, até, eu acho que posso dizer que não me odeio mais, só que a plenitude pregada por aí ainda é um lugar inalcançável para mim – seria a tal da positividade tóxica?
Talvez isso não tenha feito nenhum sentido e, em algum momento, eu tenha me perdido. Ainda é um assunto muito delicado para mim, é a exposição de uma parte muito doída, uma realidade que quase nunca é mostrada. Mas entendo que as partes ruins também precisam ser faladas, e depois de esbarrar numa encenação como a da Barbie Ferreira, era impossível deixar passar em branco.
Enquanto todo mundo ao redor grita “ame a si”, a gente segue por aqui num dia após o outro, tentando ao menos não se desgostar mais. É um processo. Tomara que o caminho siga valendo a pena.
Ps: hoje eu tenho muita gente incrível ao meu redor, aprendi a filtrar as minhas referências, descobri que não preciso me alimentar da irrealidade. Se tratando de relações e relacionamentos, também vou aprendendo a filtrar, a desencanar.
Um passo de cada vez.
Euphoria está disponível no HBO Max. Com duas temporadas, a segunda estreou há duas semanas com episódios liberados aos domingos, a partir das 23h. A série aborda diversas questões adolescentes, como sexualidade, drogas, violência, aborto, gordofobia, feminismo, amor próprio, entre outros.
Confira a cena abaixo:
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