Summer of Soul e a invisibilização da população negra


(Foto: Reprodução/Telecine)

O ano era 1969. O mundo se voltava ao festival de Woodstock e seus três dias de música, lama, ambiente “desconstruído” carregado daquele famoso conceito de paz e amor. Todo mundo conhece Woodstock. Todo mundo já ouviu falar em Woodstock. Desde que aconteceu, volta e meia o festival retoma as mídias com filmes, séries, referências, reportagens e demais conteúdos resgatando aqueles famosos dias estadunidenses que antecederam a explosão hippie dos anos 70. Contudo, esse não foi o único festival de 1969. Muito menos o único com grande relevância para a história norte-americana, principalmente considerando música e sociedade.

O Festival Cultural de Harlem acontecia entre os anos de 1967 e 1974, mas a sua principal edição foi em 1969, quando ficou conhecido pelo nome de Black Woodstock. No palco daquele ano passaram alguns dos nomes de maior relevância para a música preta norte-americana e mundial, entre suas 24 atrações, como: Nina Simone, Stevie Wonder, BB King, David Ruffin (ex The Temptations), Sly & The Family Stone, entre outros nomes. O público somava mais de 50 mil pessoas ao ar livre.


(Foto: Reprodução/Telecine)

A produção, assim como Woodstock, foi filmada, mas diferentemente do festival hippie, foi transmitida apenas em dois programas de TV nova-iorquinos por uma hora até o lançamento do documentário Summer of Soul (ou, quando a revolução não pôde ser televisionada) – assim, com esse nome todo provocativo mesmo. Antes disso, ninguém tinha se interessado pelo material, incluindo a Biblioteca do Congresso, que se recusou a colocar as gravações em seu acervo. Foram 50 anos de ostracismo, guardadas no fundo de uma gaveta, até que chegaram às mãos do diretor Questlove.

O documentário, que por muito tempo foi rejeitado, hoje concorre ao Oscar de 2022, que acontece no próximo dia 27, na categoria de Melhor Documentário em Live-Action (e por mim, deveria ganhar!). Além disso, a produção também levou o Prêmio do Público e o Grande Prêmio do Júri no Sundance do ano passado.

As imagens são surreais e te transportam para aquele momento em que foi filmada, sendo uma experiência completamente à parte se você for uma pessoa preta. O festival foi gratuito, com 24 atrações como mencionado, dentre elas figuras como Nina Simone e Stevie Wonder. O Mount Morris Park, local que abrigou o evento, estava tomado de pessoas negras com suas roupas coloridas e cabelos crespos, sentindo-se, de uma maneira muito diferenciada, empoderadas em seu próprio território.

(Foto: Reprodução/Telecine)

Em uma entrevista dada para a revista Variety, Questlove disse que se mostrou cético ao saber da existência do festival e das imagens. “Meu ego não me permitia acreditar que havia algo monumental que aconteceu na música que eu não sabia. Além disso, se não estiver no Google, nunca aconteceu. Essa é a parte triste do apagamento. Antes do nosso filme, você quase não sabia nada sobre isso. Houve apenas rumores de que talvez isso tenha acontecido”, observou o diretor.

Foram quase 40 horas de registros daquele festival esquecido e o documentário intercala as gravações com depoimentos de figuras que participaram, seja diretamente dos palcos, seja da plateia; além de especialistas. Ninguém foi o mesmo depois de participar do festival, assim como ninguém é o mesmo depois de assisti-lo. E, acho que o melhor de Summer of Soul é que, além da experiência imersiva do documentário em relação ao evento, há uma preocupação do Questlove e de toda a produção em apresentar ao telespectador o contexto histórico da época – o que, na verdade, se complementa com diversas falas das pessoas que passaram pelo palco do Harlem naquele evento.

Por exemplo, é importante saber que no ano anterior, em 1968, Martin Luther King, líder pacifista em favor dos direitos civis, liberdade e igualdade, bem como pelo fim do racismo, havia sido assassinado. Alguns anos antes, outro grande líder do movimento negro estadunidense também havia sido morto: Malcom X. Apesar das abordagens distintas, ambos lutavam pela mesma causa. No mesmo ano do Black Woodstock, alguns meses depois, mais uma grande referência negra norte-americana seria assassinada: Fred Hampton, líder do Partido dos Panteras Negras e revolucionário com bases Marx-Leninistas.


(Foto: Reprodução/Telecine)

Outras questões sociológicas são apontadas, como a mudança de termo e quando a palavra “black” começou a ser usada como substituta do termo “negro”. A jornalista Charlayne Hunter-Gault teve que brigar muito pela mudança e foi a primeira pessoa a fazer essa substituição, usando as páginas do The New York Times como palco para isso. Além disso, a África nunca era mencionada naquela época, não havia esse resgate de ancestralidade e reconhecimento. “Até então, tínhamos vergonha de ser chamados de africanos. Se você realmente quisesse chamar alguém de um nome ofensivo na comunidade negra, você os chamava de africano, e então se preparava para uma briga. É assim que esse tipo de auto-ódio estava embutido em nós desde, você sabe, séculos atrás”, comentou o Questlove em entrevista para a BBC.

O diretor vai mais além e percebe que o ano de 1969, principalmente a partir do festival do Harlem daquele ano, se mostrou um divisor de águas na história negra norte-americana – e, consequentemente, mundial. “Há uma mudança de paradigma. Uma nova geração vem e eles simplesmente têm uma nova maneira de pensar. Eles são a geração dos Panteras Negras e estão se abraçando, estão se chamando de negros. As sementes do Black Joy começam em 1969, com nossa expressão, nosso estilo, nossa moda, nossa música, nossa criatividade”, completou Questlove.

Falando em moda e estilo, uma menção honrosa à estética do festival e das população negra da época. Inclusive, temos atrações, como Sly, com um estilo que possivelmente inspirou o Prince anos depois.


(Foto: Reprodução/Telecine)

Uma coisa que me chamou atenção no documentário foi a menção de que a polícia nova-iorquina se negou a fazer a segurança do evento. Poucos policiais foram mandados, porque, no fim das contas, o prefeito da cidade era benquisto pela comunidade negra e também esteve presente no local, com direito a homenagens e tudo. Mas, a real segurança do festival foi feita de forma voluntária pelos Panteras Negras.

Enquanto Woodstock pedia por paz e amor, se opondo à Guerra do Vietnã; o Festival Cultural de Harlem levantava questionamentos do porquê alistavam-se mais negros do que brancos para essa mesma guerra, por exemplo. Além de, é claro, também discutir sobre o racismo que seguia vitimando milhares e milhões dos chamados afro-americanos – e seus líderes, como os já mencionados MLK e Malcom X, e que viria a matar Hampton.

Falando em Martin Luther King, há um grande momento no festival e um dos mais marcantes e emocionantes do documentário, que é uma homenagem ao ativista. O pastor Jesse Jackson discursa e, em seguida, Mavis Staples e Mahalia Jackson se unem em um dueto da canção “Take My Hand, Precious Lord”, a música preferida de MLK.


Outro momento marcante do documentário é quando Musa Jackson, produtor e fundador da revista digital Ambassador, diz que finalmente teve sua palavra validada. Na época do festival, Musa tinha apenas quatro anos de idade e cresceu com as pessoas questionando se realmente o evento tinha acontecido, como se tivesse sido tudo uma invenção de sua cabeça. “Eu não sou louco!”, ele diz em um dos takes do documentário.

Não, Musa, você não é louco.

Louca deve ser essa sociedade que silenciou uma grandiosidade como o Harlem Festival em favor do racismo, porque achavam que a população negra simplesmente não tinha e não tem o direito de existir. Ocultar essas imagens, escondê-las, é a prova da tentativa de apagamento que tentam fazer com as pessoas pretas todos os dias.

Ninguém viu um Stevie Wonder novinho, vencendo além das barreiras do racismo, também as limitações que a deficiência visual o impunha. Ninguém viu a riqueza de cores, estilos e ritmos que passaram pelos palcos do Harlem – e que também se encontravam no público. Ninguém viu o discurso da Nina Simone recitando “Are you ready, black people?”, causando arrepios em meia centena de milhares de pessoas.

Woodstock foi grande. O Harlem Cultural Festival foi maior, porque precisou seguir resistindo por mais de 50 anos para poder ser visto e se fazer lembrado. Tentaram o diminuir e o apagar, mas Summer of Soul o fez ser maior do que ele já era. Infelizmente, seus discursos e apelos seguem mais atuais do que nunca, provando mais ainda o quão necessária essa produção era e é. Que essa reparação histórica dê margem para outros resgates, já que Questlove descobriu outros cinco grandes eventos relacionados à população negra que também foram escondidos e invisibilizados.


(Foto: Reprodução/Telecine)

O dia era 20 de julho. O ano era 1969. O mundo, e principalmente os Estados Unidos, parava para assistir o homem chegar à Lua, com Neil Armstrong, mas era incapaz de ver a própria sociedade ali, no bairro vizinho, no pequeno e grandioso Harlem. No documentário, todas as pessoas que foram entrevistadas ressaltam como o dinheiro que foi investido para a viagem espacial acontecer poderia resolver todos, ou pelo menos a maioria, dos problemas daquela comunidade.

Enquanto Neil Armstrong pisava na Lua, Stevie Wonder pisava no palco do Festival de Harlem, por exemplo. E, para mim, não há discussões de quem era (e ainda é) o maior. Só um deles é o artista masculino não-clássico mais vezes premiado na história do Grammy.

Summer of Soul está disponível no Telecine Play, através da plataforma Globoplay. Bom filme para vocês!

Nota: 10/10
Beatriz de Alcântara
Beatriz de Alcântara

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