A régua colonial e a falta de proporção moral de Hollywood no caso Will Smith

(Foto: Reprodução/Getty Images)

Depois que a gente toma consciência de algumas coisas, uma espécie de véu some dos nossos olhos e nos mantemos em alerta para todo e qualquer indício daquilo que antes não conseguíamos enxergar. No meu caso, é em relação ao racismo. Inclusive, repensei muito se e como abordaria esse assunto aqui, visto que eu tenho muitas opiniões sobre, só que nem todo mundo está “pronto para essa conversa”. Mas, vamos lá!

Desde o fatídico tapa que Will Smith deu no rosto de Chris Rock na última edição do Oscar, a internet vem sendo bombardeada de notícias e desdobramentos do caso, seja em relação ao acontecimento e ao histórico de atrito entre os artistas, ou se tratando das consequências que teve o “ato passional” de Smith. A questão é que, ao meu ver, é impossível não notar a postura desproporcional que a mídia e a própria Academia optou por tomar diante do caso.

De antemão, quero pontuar que não concordo com nenhum tipo de violência, principalmente sistêmica, e é justamente por isso que repudio veementemente o que Chris Rock fez naquela noite.

Violência psicológica também é violência

Antes de falar sobre os dois “protagonistas” da situação, é preciso pontuar que a primeira vítima – e a única – foi Jada Pinkett-Smith. A atriz, dubladora, cantora e empresária estadunidense, de 50 anos, convive com uma doença autoimune conhecida como alopecia areata, onde dentre as consequências está a queda capilar e, no enfrentamento a isso, Jada decidiu raspar a cabeça. Durante o último Oscar, no dia 27 de março, Chris Rock achou que seria legal e ~engraçadão~ usar essa situação como piada para a plateia e o mundo inteiro rir.

Isso é violento.

(Foto: Reprodução/Getty Images)

Tem uma frase do Lebron James, jogador de basquete do Los Angeles Lakers, que diz que a pessoa mais desrespeitada do mundo é a mulher negra. E ele não mentiu. O que aconteceu no Oscar é um ótimo retrato disso.

De um lado, criticavam o Will Smith pela violência, por ter “tomado as dores” da esposa como uma espécie de homem das cavernas machista, levantaram aquele discurso de censura do humor e toda essa baboseira, e, do outro lado, tivemos quem criticasse o Rock, que humor tem limites, que a piada foi errada e desnecessária. Mas, ninguém apontou que a primeira violência aconteceu com a Jada.

E eu me solidarizo com a sua dor, de primeira, porque é exaustivo ter que existir em uma sociedade que não consegue te enxergar com todas as suas especificidades. Na situação em questão é necessário levar em consideração que o cabelo de uma mulher negra é, antes de tudo, um símbolo de sua resistência e existência. Então, ter que se habituar a enxergar sua beleza também sem ele é um processo árduo. A autoestima, inseguranças e tantos outros tópicos relacionados a isso devem sim ser pauta.

O segundo ponto é que mulheres negras não estão acostumadas a serem defendidas em público. Nas próprias produções hollywoodianas, todos acham fofo e engraçado quando dois homens se estapeiam por uma mulher branca. Contudo, quando um marido preto vai “defender a honra” de sua mulher preta, não deveria. Ela pode fazer isso sozinha. Ela não pode ser frágil, porque nunca nos coube a fragilidade. E ser forte o tempo todo cansa.

Volto a dizer que não acho que violência seja a melhor resposta para resolver as coisas, mas sou incapaz de julgar alguém que optou por responder um ato violento com outro, ainda mais considerando todos os agravantes da situação.

A alopecia não é uma simples doença que a única consequência é a queda de cabelo. Um estudo publicado na JAMA Dermatology, feito por pesquisadores do curso de Medicina da Universidade de Calgary, no Canadá, aponta que pacientes com alopecia areata (AA) têm maior propensão a desenvolver depressão – bem como pacientes com depressão possuem risco de desenvolver a alopecia areata. De acordo com a pesquisa, cerca de 34% dos pacientes de AA têm risco de serem diagnosticados com depressão no futuro e isso se aplica a outros transtornos psicológicos associados, como a ansiedade.

Quem tem ansiedade, depressão, síndrome do pânico ou qualquer coisa nesse sentido sabe que existem coisas que são gatilhos emocionais para desencadear uma crise. Uma piada, principalmente sobre uma vulnerabilidade sua, pode ser suficiente para atingir uma série de outras questões que envolvem o psicológico, o emocional, a saúde mental e derivados. Não é piada, na verdade. Se tem uma pessoa afetada que não está rindo porque aquilo lhe afeta pessoalmente, ainda mais em uma condição que ela não pode mudar nada a respeito, o humor passou longe. Violência psicológica também é violência e ponto.

Se a piada fosse com outra mulher presente, sendo esta branca, a situação seria outra. Acreditem.

“Tire o nome da minha mulher da p*rra da sua boca!” (Foto: Reprodução/Globoplay)

A desproporcionalidade do racismo

E, se Will Smith fosse branco, a condução do caso também seria diferente.

Depois do acontecido, Will levou a estatueta de Melhor Ator por King Richard. Foi seu primeiro prêmio do Oscar em seus mais de 20 anos de carreira. A noite era especial por uma série de motivos, mas hoje se resume ao seu “deslize”. Quando o Oscar acabou, a internet já estava tomada de especulações sobre a possibilidade dele ter que devolver o troféu, sobre ele ser expulso da Academia de Cinema, sobre ser preso caso Rock prestasse queixa, dentre outros tópicos.

E aí que te questiono, aí do outro lado, quantas vezes você já viu algo desse tipo acontecer, em relação às inúmeras denúncias de assédio e abuso sexual, violência doméstica e demais “más condutas” em Hollywood?

Nenhuma. Não desse jeito, com essa agilidade e proporção.

Vi no Twitter alguém levantando o nome do Kevin Spacey como parâmetro de reação, mas ele levou meses para sofrer alguma retaliação por parte de Hollywood. E, mesmo assim, seria um nome dentre os tantos abusadores e agressores que existem na nata do cinema estadunidense – ah, mas Kevin já voltou a fazer filmes, ok? Um longa, inclusive, polêmico que traz a história de um homem acusado de pedofilia. Quanto mau gosto.

Vamos então ao Will Smith!

A Academia se pronunciou no dia seguinte à cerimônia com um discurso de que se opõe a toda e qualquer violência; e que um processo disciplinar contra o ator seria iniciado sob a justificativa de “violações dos padrões de conduta da Academia, incluindo contato físico inadequado, comportamento abusivo ou ameaçador e comprometimento da integridade da Academia”.

Daí, na última semana, o próprio Will renunciou ao seu status de membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Há poucos dias surgiu também a história, publicada pelo The Sun, de que Smith teria se internado em uma clínica “de reabilitação” para lidar com o estresse e tudo mais. Vale o destaque de que na própria cerimônia, durante seu discurso de Melhor Ator, Will se desculpou com os convidados e a Academia pela situação e depois usou suas redes sociais para publicar um pronunciamento em que, neste, se desculpava também com Chris Rock.

Falando em Chris Rock, no dia seguinte ao evento, os ingressos de seus shows de stand-up já estavam com valores triplicados e esgotando em tempo recorde. Ele, por outro lado, nunca se desculpou com a Jada. E nem vai, porque Jada é piada para ele há tempos.

Ainda nos anos 90, durante o programa The Chris Rock Show, o comediante já zombava de Jada. Na época, ele debochou da participação da artista na marcha Million Women, que era um ato público de empoderamento feminino que acontecia na Filadélfia, nos Estados Unidos. “Sabe, na March Million Women, houve discursos emocionantes de pessoas como Maxine Waters, Winnie Mandela, e aqui estão algumas palavras inspiradoras da adorável Jada Pinkett”, dizia ele no trecho em questão. Só que ao passar o vídeo com a suposta fala dela, era um áudio falso sobreposto às imagens.

Em 2016, também em uma cerimônia do Oscar, Rock se sentiu no direito de zombar do boicote da atriz, que aderiu ao movimento #OscarsSoWhite. “Jada boicotar o Oscar é como eu boicotar a calcinha da Rihanna. Não fui convidado”, falou Chris Rock. (A ~piada ainda é misógina, né?! Puts)

Ou seja, essa “relação” é antiga.
 
Willow Smith raspou a cabeça em apoio à mãe e foi sua maior incentivadora durante o processo de autoaceitação. (Foto: Reprodução/Getty Images)

Hollywood também tem um problema sério com o casamento aberto que Will e Jada Smith mantêm. A não-monogamia do casal veio à tona quando os tabloides começaram a acusar Jada de infidelidade, expondo a relação dos dois e o Will como vítima de uma suposta traição. No ano passado, Smith veio a público para esclarecer de uma vez o relacionamento aberto e destacou que também se envolveu com outras pessoas durante o período em que alegavam a traição de Jada Pinkett – a atriz, inclusive, afirma que os dois estavam separados quando teve um romance com o rapper August Alsina.

Segundo Will, Jada cresceu em um lar que não tinha uma ideia de casamento convencional e isso nunca foi estabelecido para ela. A questão da monogamia, que foi mantida por muito tempo no casamento, foi pauta de discussões entre o casal até optarem por dar mais confiança e liberdade um ao outro. Jada e Will são casados há 23 anos e são pais de Jaden, de 23, e Willow, de 21 anos. Além disso, Will Smith possui um terceiro filho, mais velho, fruto de seu primeiro casamento com Sheree Zampino, o Trey, de 29 anos.

São vários os agravantes na postura que o tribunal da internet, a imprensa e a própria Academia tem adotado, mas a maior delas é o racismo, mesmo que estrutural (e “inconsciente”, duvido, mas ok). Além da internação e da renúncia à Academia, Will Smith também está sendo boicotado por diversas empresas cinematográficas, como a Netflix. A plataforma estava desenvolvendo um filme com o ator, “Fast and Loose”, mas o material foi engavetado após a polêmica do Oscar.

Além disso, Apple+ e Netflix estavam em uma disputa para conseguir os direitos a fim de executar uma produção biográfica sobre o ator. Adivinhem? Ambas retiraram as ofertas. Um quarto filme dos “Bad Boys”, que estava sendo cotado, também entrou para a lista de projetos do/com o ator que foram para a gaveta. A Sony também colocou os projetos com o artista para dentro da geladeira. Parece que Will Smith não é mais lucrativo para Hollywood.

Como eu questionei ali acima, em quantos casos tivemos a mesma proporção? Até hoje, homens que agrediram mulheres, que abusaram de crianças e atrizes durante os trabalhos, que já deram declarações polêmicas e tudo mais continuam sendo prestigiados por Hollywood. São indicados a prêmios e seguem recebendo incentivos e financiamentos para seus projetos. Um exemplo claro disso é a indicação de Marilyn Manson ao Grammy 2022 por conta de sua parceria com Kanye West no álbum Donda. Manson é acusado de violência doméstica, abuso sexual, tortura física e psicológica, dentre outras coisas.

A régua moral é branca

E eu listei outros exemplos!

O prestigiado cineasta Woody Allen é acusado pela filha adotiva de abuso sexual quando ela tinha sete anos de idade. O assunto é delicado e a HBO Max tem um documentário sobre toda a polêmica chamado Allen contra Farrow. Pode não conter todas as verdades dos fatos, mas ajuda a entender a acusação.

Nem preciso dizer que Allen nunca foi cancelado por Hollywood, né? Ah, e ninguém nunca ponderou pedir para que ele devolvesse suas estatuetas.

Gary Oldman, nosso amado Sirius Black e indicado ao Oscar do ano passado com Mank, também já foi acusado de agressões físicas e emocionais durante seu casamento. Nunca foi “cancelado”.

O diretor Roman Polanski até foi expulso da Academia, cerca de um ano depois das acusações de estupro por parte de três atrizes. Além disso, anos antes, o roteirista foi preso depois de ser acusado de abuso sexual, perversão e sodomia com uma menor de idade. Ah, e uso de drogas também. Mas, apesar disso, em 2020 ele levou o chamado “Oscar” francês, o prêmio César. A cerimônia foi repleta de retaliações e protestos, mas ainda assim ele foi indicado e ganhou!

(Foto: Reprodução/Internet)

E o Johnny Depp? Acusado de agressão física e violência doméstica contra sua ex-esposa, Amber Heard, fez filmes depois da polêmica – inclusive Animais Fantásticos e Onde Habitam, como Grindelwald; mas foi “convidado” pela Warner Bros. a se retirar, sendo substituído agora no terceiro filme por Mads Mikkelsen. Em setembro do ano passado, ele recebeu o prêmio honorário Donostia do Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha.

Casey Affleck, irmão do Ben Affleck, foi acusado de assédio sexual e o próprio ator assumiu que teve comportamentos inadequados. Sete anos depois? Toma aqui um Oscar!

Esses são só alguns dos casos mais graves, mas tem Jared Leto com declarações polêmicas e segue fazendo trabalhos (nem sempre bons, mas segue), sendo indicado em premiações de renome e etc. O Paul Bettany, astro de WandaVision, que se envolveu na polêmica de Depp e Heard com comentários escrotíssimos sobre a ex-esposa do seu amigo (envolvendo até necrofilia, sério! que nojo!), mas continua atuando e recebendo indicações também. Nossa, e falar de Marvel é complexo, né? O que mais tem é gente com declaração polêmica, como Chris Pratt, Jeremy Renner…etc etc.

Outro que teve comentários pesadíssimos (e acusação de estupro também), mas esteve nos cinemas há poucos meses com o filme “Morte no Nilo”: Armie Hammer. O astro de “Me Chame pelo Seu Nome” passou uns meses no rehab, no ano passado, e parece que já foi perdoado. As investigações sobre a acusação de abuso sexual seguem em andamento.

Mas, sabe o que eu quero dizer com todos esses exemplos? É que, quando você é branco, você tem direito a errar, por pior e mais condenável que seja seu erro. Você é abraçado pela premissa de que todo mundo erra, de que era só um jovem inconsequente, a culpa recai para a mulher, para drogas, para qualquer outra coisa. E, mesmo quando você é culpabilizado, você é reinserido socialmente depois de pedir desculpas e lidar com seu erro/crime.

(Foto: Reprodução/HBO Max)

Pessoas pretas não têm esse mesmo direito. Não podemos errar, não podemos ser frágeis, não podemos ter um deslize e nem se desestabilizar ou perder a cabeça. Quando erramos, não temos direito de resposta, direito de nos desculpar. Ou melhor, até temos, quando estamos andando sob o que a casa grande considera certo e que nos cabe. Em uma das minhas pesquisas para escrever esse conteúdo, encontrei um texto que dizia que a carreira de Chris Rock segue intacta (e até melhor) porque “cumpre uma das exigências mais admiradas pela côrte: o açoite de negros por negros”.

(Djamila Ribeiro trouxe outro texto importante sobre o caso, vão estar todos linkados no fim desta página.)

E é exatamente isso, sabe? O espetáculo se torna “pior” moralmente falando para o Will Smith por estarem todos em uma posição de igualdade, de classe e raça, a desconsiderar a Jada, claro. Smith já foi condenado pela tribo da moral e dos bons costumes, que não se colocou em momento algum em um lugar de empatia para, ao menos, compreender a situação (mesmo que seguisse discordando). Smith foi chamado de violento, mesmo sem outros históricos de agressões físicas e verbais, porque essa capa de agressividade sempre veste bem no homem preto. E toda essa situação só constata que não se pode medir acontecimentos envolvendo pessoas negras utilizando uma régua de pessoas brancas. É desproporcional.

Tem muita coisa a ser dita, mas eu sinto que já falei demais, por ora. Em suma, fica a comprovação de que a indústria é racista. Ela condena o erro de negros que vão na sua contramão, invisibiliza mulheres pretas e “abraça” aqueles que dançam conforme a música que eles escolhem. A régua moral é sempre considerada a partir dos seus e, por isso, os brancos possuem direito a errar sem grandes prejuízos (financeiros até sim, morais? nunca!), como vimos. Não sei se tenho expectativa de que isso mude um dia. É institucional, estrutural e sistêmico. Mas, sigo fazendo a minha parte.

Ps: você pode ser contra a violência sistêmica (e a violência, de maneira geral) e compreender que esse é um caso que merece um olhar individual, considerando todos os envolvidos, a relação entre eles e suas particularidades. Não dá para colocar a medida moral de que “bateu e perdeu a razão”, porque nesse caso em específico existe MUITA coisa por trás. E, ao contrário do que muita gente argumentou, não acho que a situação abra precedente para usarem do mesmo argumento em um outro momento, com outras pessoas. É um caso isolado e deve ser analisado como tal, assim como outros casos isolados devem ter seus agravantes e antecessores considerados em sua pauta e avaliação.


FONTES E LINKS COMPLEMENTARES

Se você chegou até aqui, primeiramente, muito obrigada! Aqui embaixo estão listadas todas as fontes e leituras que são válidas sobre o caso para te ajudar a entender e formular sua própria opinião. Tentei colocar um pouco de todos os tópicos que envolvem esse caso e o meu ponto de vista frente a tudo isso, mas é complexo demais. De qualquer forma, seguimos! 

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Beatriz de Alcântara
Beatriz de Alcântara

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