Elas são detestáveis. E eu também.



(Imagem: Saiorse Ronan como Lady Bird/Divulgação)

Querido diário que não é diário,


Quando Lady Bird: A Hora de Voar chegou ao mundo em 2017, a sua recepção pelo público passou por uma curva de amor para ódio quase imediata. E motivos para isso não faltavam. O filme de Greta Gerwig acompanha a jornada de uma jovem de Sacramento rumo à universidade com o seu jeito excêntrico e um relacionamento conturbado com a mãe.


Algumas das críticas que a menina passarinho recebeu são mais do que válidas e se mostraram ainda mais pertinentes com o lançamento do segundo filme de Gerwig, Adoráveis Mulheres, em 2019.


A adaptação do livro de Luisa May Alcott, assim como o primeiro trabalho da sua idealizadora, é um filme que peca na diversidade ao tentar narrar trajetórias femininas sob uma ótica extremamente branca. E enquanto Greta Gerwig não entender isso, estará se consolidando como a Sofia Coppola dessa geração. E eu não falo isso de um jeito positivo.


Mas como já apontado anteriormente, essa é uma crítica muito mais do que merecida e falar sobre esse filme sem deixar isso estabelecido seria apagar a falta que temos de mais histórias sobre mulheres plurais e diversas.


Contudo, Lady Bird também recebeu críticas que não são tão justas assim com a sua personagem. E todas elas, de maneiras diferentes, giravam em torno de uma única coisa:


Lady Bird é detestável. Uma chata.


De um jeito parecido, a personagem Hannah Horvath de Girls foi o saco de pancada para aqueles que não gostavam da sua criadora problemática, Lena Dunham


A personagem Devi da série adolescente Eu nunca… também recebeu sua parcela de comentários negativos sobre ser autocentrada, insensível, egoísta e mimada. Assim como Lenu, a protagonista da tetralogia napolitana de Elena Ferrante que ganhou uma versão audiovisual na série A Amiga Genial, oscila entre ser compreendida e atacada pela sua inveja e obsessão pela amiga Lila.




(Imagem: Gaia Girace e Margherita Mazzucco como Lila e Lenu/HBO)

Mulheres em todos os ambientes precisam estar não somente dentro dos padrões estéticos, mas também dentro padrões de doçura comportamentais que as tornam “gostáveis” para o mundo. E claro, para os homens.


Durante o seu mandato como presidenta, Dilma Rousseff era considerada antipática, dura e fria pela postura que precisou assumir para ser levada a sério no ambiente masculinizado que é a política brasileira. É cabível perguntar o quão escarnecida ela teria sido se estivesse dentro de todos os padrões de feminilidade que - para a surpresa de ninguém - também são utilizados pelos homens como uma maneira de classificar mulheres como menos sérias e inteligentes.


Em 2019, a personagem Capitã Marvel, interpretada por Brie Larson, foi tida pelos fãs do Universo Cinematográfico da Marvel como antipática por não sorrir o suficiente e como arrogante por ter consciência do tamanho do seu poder. Isso veio das mesmas pessoas que enchiam o Facebook no começo da década da passada com vídeos e imagens da famosa cena em que o Homem de Ferro de Robert Downey Jr. se gabava por ser “gênio, bilionário, playboy e filantropo”. 


Mas é preciso ressaltar que Carol Danvers não é, de fato, uma personagem feminina que se encaixa na categoria de detestável. Seu maior defeito foi não mostrar os dentes. Mas ainda é uma heroína altruísta, com um forte senso moral, que dedica sua vida a ajudar os outros.


Isso não significa que esse tipo de personagem precise ser uma vilã ou uma anti-heroína (embora há algumas décadas esses fossem os únicos espaços que elas podiam ocupar). Lady Bird é a protagonista da sua própria história de formação e Lenu é a narradora não-confiável da sua história com Lila. Mas as criadoras dessas personagens não diminuem os defeitos delas em prol das suas qualidades e não tentam aliviar os seus erros para que seus acertos possam compensá-los.


Talvez a maior representante das mulheres detestáveis do audiovisual atualmente seja Fleabag, que nos cativa com suas trapalhadas e relacionamentos frustrados, mas também causa revolta ao dormir com o namorado da melhor amiga, Boo. Amiga esta, que pelo seu frágil estado mental, acaba se suicidando.




(Imagem: Phoebe Waller-Bridge como Fleabag/Amazon Prime Video)

A morte de Boo é a tentativa (e o sucesso) que Phoebe Waller-Bridge estabelece para nos dizer que sua protagonista não precisa ser perdoada. E que nem a sua autora a perdoará. Você também não deveria.


Entretanto, o apego que mulheres ao redor do mundo tem com personagens como essas demonstra que nós precisamos de mulheres detestáveis. 


Autores e seus protagonistas masculinos têm esse direito há décadas. Martin Scorsese e seu Taxi Driver estão aí para nos mostrar que não importa o quão apático e instável um homem seja, ele vai encontrar um espaço para ser amado pelo público. Tim Burton poderá continuar a ter sua obra separada do seu comentário sobre pessoas racializadas não poderem existir nela. E o Coringa de Todd Phillips (uma espécie de versão pirata do motorista de táxi citado anteriormente) pode cometer crimes e assassinar uma pessoa em rede nacional, mas terá a licença poética que precisa para ser chamado de “complexo”. 




(Imagem: Cena de Coringa/Divulgação)

Enquanto isso, Cersei Lannister vai diretamente para a caixinha de vilã, sem direito a uma redenção cultural ou a um roteiro que valorize a sua complexidade, porque, embora Hollywood permita que mais personagens como estas existam e ganhem seu público, isso não será feito sem um “apesar de” ou “porém”.


Não posso dizer que a maioria das mulheres do mundo se identifique mais com uma protagonista detestável, porque isso seria eu projetando a mim mesma em outras pessoas. Mas gosto de pensar que não estou sozinha nessa jornada de defender as indefensáveis.


Talvez, um dia, elas não precisem mais de defesa. Talvez chegue o momento em que elas possam simplesmente existir. Enquanto isso, estarei aqui advogando o meu caso pelas mulheres detestáveis, porque, no fim do dia, sou mais como elas do que gostaria de admitir.

Rayssa Oliveira
Rayssa Oliveira

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