
Ubuntu. Eu sou, porque nós somos.
Pode parecer irônico, mas, quando penso em como escrever sobre “A Mulher Rei”, não é a representatividade que vem na minha mente em primeiro lugar – logo eu que tô sempre levantando essa bandeira por aqui. Até porque acho que isso é meio óbvio e repetitivo, em comparação com as demais críticas e resenhas sobre o filme que estão por aí na internet. Ele é um filme potente sim, ele é um filme sobre e para a negritude sim, disso não há dúvidas.
Contudo, ele é uma espécie de abraço quentinho e “beijinho de mãe” em ferida exposta, que te pega de surpresa e você não consegue não senti-lo. Para quem já foi machucada de alguma maneira cruel (ainda que não fisicamente, às vezes) e nunca conseguiu colocar em palavras, muito menos externalizar, “A Mulher Rei” vem como um lembrete de que você é muito mais do que a dor que lhe causaram. Quando Nanisca, interpretada por Viola Davis, compreende que ela é sua própria fera amedrontada pelas dores do passado e sobre a necessidade de enfrentar isso, ela fala mais de mim e de outras tantas mulheres, sejam elas pretas ou não, do que pode parecer.
É um filme sobre acolher suas próprias dores, mesmo aquelas que ninguém, além de você mesma, sabe, e entender que você é maior do que isso.
Se você for uma mulher preta, o diálogo do filme vai tocar em lugares ainda mais intimistas, desde a história em si até no todo que a obra representa. A história, que acompanha um exército de mulheres guerreiras em um ponto de uma África Ocidental (atualmente onde se localiza o Benin) do período escravocrata, demonstra o poder de um povo que em tantos outros lugares do mundo eram oprimidos e escravizados, mas ali, naquele continente, ganhavam posições de reis. O enredo apresenta essa comunidade que se põe à disposição de se opor ao regime de escravidão, que negociava e vendia os seus iguais, que agredia e violentava as suas mulheres, e que não olhava para o outro menos abastado como alguém que merecia o mesmo respeito. No reinado de Ghezo, ele quer fazer a diferença.
Dizer que Viola Davis brilha é redundante, mas mais do que isso, ela abre espaço para que as demais brilhem também, com destaque para Thuso Mbedu e Lashana Lynch. As duas dão vida às guerreiras Nawi e Izogie, respectivamente, e contracenam a maior parte do tempo juntas. A interação entre elas se apresenta de forma natural, com uma dose extra de carisma por parte da nossa Capitã Marvel do multiverso. Inclusive, vou aproveitar esse gancho para dizer que aqui sim vemos essa heroína protagonizando batalhas incríveis – e não naquele filme lá, vocês sabem qual.
Viola e Thuso também possuem uma relação à parte, que mesmo quando nos pega de supetão, aponta as similaridades e nos envolve entre farpas e cuidados. Além disso, quando a verdade vem à tona, é impossível não se emocionar com a sinceridade que tudo é exposto, apelando sempre para o real e sem medo de demonstrar a vulnerabilidade e delicadeza de toda a situação.
Apesar de todo o contexto, com reinados e guerreiros, mesmo os homens negros que aparecem em tela aparentam ser coadjuvantes perto da grandeza das Agojie. Esse exército de mulheres realmente existiu formando um dos regimentos militares de Daomé, onde hoje fica o Benin. O nome colonizado delas era “amazonas” e a história dessas mulheres inspiraram personagens também na ficção, sim, estou falando das Dora Milajes, que vemos em Pantera Negra e em Falcão e o Soldado Invernal.
Como eu ia dizendo, os homens aparecem em posições secundárias em relação ao todo, até mesmo o rei Ghezo, interpretado por John Boyega (Star Wars). Mesmo sendo a figura mais importante daquele lugar, ele parece pequeno perto da grandiosidade da nossa “kinga” e de toda a história ali contada.
“A Mulher Rei” não poupa os discursos, muito menos as violências, que se fazem necessárias para apontar as dores e as camadas das personagens. Há sangue e muita ação em suas cenas lindamente coreografadas que não perdem em nada para outras grandes produções como Game of Thrones, por exemplo.
A obra discute machismo, liberdade, escravidão, raízes, representatividade, maternidade, violência sexual, sistemas opressores e capitalistas, poder e afins de um jeito que você não se sente sobrecarregado pelas informações e, ao subir dos créditos, entendeu toda a mensagem. Ele nem se estende demais, mas também não peca pela superficialidade.
Bem dosado, sensível, forte e necessário. Acho que esse texto inteiro poderia ser resumido nessas cinco palavras e definições. É uma experiência que, certamente, ainda vai conversar mais com o telespectador depois de seu fim do que durante, enquanto você está apenas recebendo a mensagem, mas ainda não digeriu.
Não sei se dá para digerir.
Talvez seja presunção ou exagero, mas acho que para algumas pessoas existe um antes e depois desse filme. Talvez eu seja uma delas. Nunca tive coragem de olhar para determinadas feridas, muito menos me dedicar uma dose de carinho porque ter passado por elas, mas “A Mulher Rei” me deu uma dose de esperança e possibilidade. Se Nanisca não é definida pela dor que passou, eu também não. Muito menos você aí do outro lado.
Eu sei que essa deveria ser uma resenha mais crua e direta, afinal estamos falando do #EmCartaz, mas desculpe o transtorno, eu precisava colocar um olhar mais pessoal nesse texto. Quem me conhece, sabe.
Que esse filme possa te acolher da mesma forma que eu me senti acolhida, porque em tempos de tantos julgamentos e apontar de dedos, às vezes um abraço é tudo que a gente precisa. E eu me senti abraçada. Obrigada, Viola.
Nota: 10/10
Onde assistir? Nos cinemas
*Esse conteúdo foi patrocinado pela Livraria do Luiz, localizada no Centro de João Pessoa e no Mag Shopping, no bairro de Manaíra.
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