Desculpe o transtorno, mas o amor e a farsa moram nas ambiguidades das memórias



Me propus a escrever sobre Aftersun, um filme britânico lançado no Brasil em dezembro do ano passado e que está disponível no Mubi. O longa marca a estreia de Charlotte Wells como diretora e percebi que existe uma diferença, ainda que singela, sobre o filme e a minha percepção sobre ele. E digo mais, acredito que esse seja um sentimento comum para quem já o assistiu, porque a história vai atravessar as pessoas de formas distintas a depender das próprias experiências.

Esse é um filme sobre paternidade e amor, mas principalmente é um filme constituído de memórias e de como elas podem ser diferentes do que pensávamos na hora em que a coisa toda estava acontecendo ou mesmo dependendo do ponto de vista da situação. Sophie e Calum estão de férias em um hotel na Turquia, vivendo diversos tipos de experiências enquanto a jovem de registra tudo, ou uma parcela de tudo, através das lentes de uma câmera de filmes antiga.

Aftersun é autobiográfico sem ser, porque parte da história é a vida da diretora, mas tudo adaptado para aquele universo fictício que encontramos ali. Apesar do grande elenco de apoio, o filme se concentra nas atuações e olhares de Paul Mescal e Frankie Corio, que interpretam os protagonistas, pai e filha. Calum, vivido por Mescal, tem 35 anos e a Sophie de Frankie tem 11 anos.

A primeira cena do filme é um questionamento da jovem curiosa sobre o aniversário de 11 anos do pai, sobre o que ele lembrava daquela época e de imediato não temos resposta. Mal sabíamos que a resposta ou o impacto do que seria contado está diluído de forma muito sutil em pouco mais de uma hora de filme. Na verdade, sutileza é uma palavra que pode definir bem Aftersun. Ele é cheio de detalhes, com uma abordagem sutil e quase ingênua de algo mais profundo que de cara não conseguimos entender o que é, mas que compreendemos com o subir dos créditos.

As cenas das férias são intercaladas com momentos de contemplação do ambiente ao redor e também com uma espécie de flashback da Sophie que conheceremos depois, já adulta, com seus 30 e poucos anos. Essa é uma informação importante, porque é o gancho utilizado por Charlotte para demonstrar como nossas memórias podem ganhar novas percepções à medida que envelhecemos.

A gente percebe a falta de conexão da dupla, enquanto eles encontram a sincronia em pequenos momentos amigáveis, mas que trazem à tona a melhor versão de Calum. A gente vê a inexperiência da pré-adolescente, o choro gritado de um pai que se vê duplamente frente a uma infância que não vive e a ambiguidade de um abraço e uma queda que nunca acontecem ao mesmo tempo, porque demonstra àquela garota, agora uma mulher, que ela nunca veria todos os lados de seu próprio pai.

E quando o filme terminou, eu entendi. Apesar de emocionante e de estar emocionada, eu não chorei grandes choros durante o filme ou com o seu final, mas foi quando a mensagem bateu, que as lágrimas saltaram aos olhos - e custaram a parar.

Aftersun bateu para mim como uma obra sobre pais. Sobre a necessidade de enxergar essas pessoas como seres humanos que erram, que sofrem e que lidam com seus próprios fantasmas, mas que raras vezes externam isso para os filhos, na tentativa de blindá-los. Existe uma falsa percepção de que nossos pais são como super-heróis, capazes de resolver todos os nossos problemas e curar todos os males, sendo que muitas vezes eles fazem isso enquanto sustentam suas próprias questões, seus medos e coisas que - na maioria dos casos - precisam lidar sozinhos. É um filme sobre aquela sombra que paira em um pai ou uma mãe, mas que ele finge que não está ali enquanto cria memórias felizes para os próprios filhos.

Minhas lágrimas, portanto, vieram desse lugar. De lembrar que em um momento de dor e de medo dos meus pais, eu sei que eles vão escolher evitar que isso me alcance, enquanto passam a imagem de força e resiliência - não que não sejam, mas vocês me entendem. De lembrar que somente depois de trabalhar muito isso dentro de si e depois de muito tempo de vencer os próprios desafios, eles se sentem “à vontade” para contar sobre como se sentiram em um momento específico, sobre como isso os afetou e sobre como sentiram medo, por exemplo.

E, apesar de externar isso menos do que gostaria, são nessas vulnerabilidades que eu mais os admiro. Que eu mais me inspiro. É quando eu entendo, genuinamente, que a vida acontece pra todo mundo, que existem problemas sim e, assim como a Sophie, eu consigo olhar para as minhas próprias memórias com uma outra perspectiva.

Novamente, assim como a Sophie, é justamente quando entro em contato com essa percepção que também consigo amá-los um pouco mais. É a gente que me fez gente. Que mesmo que a gente não saiba 100% um do outro, que existam pedacinhos mantidos nas sombras, ainda assim existe amor por cada parte. Cada um da sua maneira, com seu jeito de dizer e de mostrar, mas está ali.

E quando eu digo que cada um vai ter uma experiência diferente com o filme, é por entender que muito disso vem da relação que cada um tem com os próprios pais. Com a mãe. Com o pai. Ou com qualquer outro responsável que tenha esse título no dia a dia. É um filme sobre paternidade sim, mas mais ainda sobre relações familiares.

Pode ser doloroso se reconhecer nele, mas também é um alívio. Afinal, reconhecemos as pessoas reais que nos rodeiam, com todas as suas camadas, e entendemos que talvez por isso ou apesar disso, nós as amamos. E o amor é suficiente - estando perto ou longe, convivendo ou não. Gostando ou não.

Nota: 10/10
Onde assistir? Mubi

Beatriz de Alcântara
Beatriz de Alcântara

Para saber mais sobre o/a autor/a, acesse a aba "Quem Somos".

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Compartilha sua opinião! ♥