Você se lembra de onde estava em janeiro de 2013?
Eu tinha 18 anos e estava em uma viagem de família quando acordei com a notícia do incêndio na Boate Kiss. Na época eu tinha um amigo em Canoas e fiquei desesperada com a ideia de que ele pudesse estar na boate. São 280 km entre Canoas e Santa Maria. Era improvável que ele estivesse lá; mas ainda assim, eu sofri. Eu sofri e liguei pra ele às 8 horas da manhã perguntando se ele estava em casa, se ele estava bem. Eu sofri e o telefone dele tocou e horas antes também tocaram outros mil telefones. Ele estava bem. Os outros não estavam.
A estreia da minissérie ficcional Todo Dia a Mesma Noite na Netflix reacendeu o drama que todos vivemos há dez anos. A adaptação do livro homônimo da jornalista Daniela Arbex relembra e homenageia os mais de 200 mortos no desastre; mas, mais do que isso, também expõe a fragilidade do sistema penal e judicial brasileiro. A obra denuncia e protesta contra a morosidade e burocracia dos órgãos responsáveis pela investigação e punição dos culpados; além de ter causado barulho no Ministério Público.
A boate inaugurou em 2009 e em 2012, após reclamações sobre barulho, passou por uma grande reforma que alterou a localização do palco, incluiu novas paredes na planta e contou com um novo projeto de acústica. Em 2021, o engenheiro responsável pelo projeto de acústica foi ouvido e comprovou que as espumas não estavam especificadas em projeto ou em memorial de reforma. Segundo o engenheiro, no início do ano da reforma, o Ministério Público foi até a boate realizar a fiscalização e constataram que tudo estava de acordo com o Termo de Ajustamento de Conduta. Até então, não havia espuma. Ainda segundo ele, sobre a instalação da espuma inflamável, mais barata do que a adequada, isso só aconteceu um ano depois: no dia da tragédia.
Além da espuma tóxica ter sido determinante para a tragédia, alguns detalhes da boate dificultaram a saída das pessoas: guarda-corpos e obstáculos planejados para direcionar as pessoas para os caixas de pagamento impossibilitaram o acesso à saída; a sinalização de emergência era precária e o sinal luminoso nas portas dos banheiros fez as pessoas confundirem os ambientes com a saída de emergência - que, ao contrário da legislação, era somente uma.
Hoje, eu entro em lugares já pensando em como vou sair caso ocorra algum acidente. Olho a largura das portas, altura do teto, material do forro, sinalização de emergência e rota de fuga. Mesmo com a criação da Lei Kiss (que define normas de segurança, prevenção e proteção contra incêndio em estabelecimentos com capacidade de público igual ou superior a 100 pessoas). Mesmo com projetos aprovados em prefeituras. Mesmo com laudos dos bombeiros.
Porque a Lei Kiss foi flexibilizada e só terá aplicação total no fim de 2023. Porque eu conheci estabelecimentos que burlaram a quantidade de extintores por economia e acabaram pegando fogo. Porque eu conheci pessoas com deficiência que tiveram dificuldade em sair de algum local pela falta de acessibilidade. Porque eu conheci pessoas que sofreram com intoxicações graves ao se alimentarem em restaurantes vistoriados pela vigilância sanitária. Porque, ainda hoje, as Prefeituras contratam por pregão o Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio para escolas de redes municipais de ensino - o que é indevido. Porque nunca entramos em tantos lugares sem sabermos se vamos sair vivos.
Todo Dia a Mesma Noite é uma ferida ainda aberta. É uma dolorosa homenagem aos jovens assassinados. O que aconteceu antes e cruzou a vida desses jovens com o incêndio na boate ainda é uma mancha: dez anos depois da tragédia, não sabemos se o Ministério Público realmente realizou a vistoria sem a presença das espumas. O projeto de reforma não foi aprovado pela Prefeitura, mas mesmo assim, a casa noturna conseguiu o alvará de localização em 2010. Em dezembro de 2021, o Júri ainda ouvia depoimentos de arquitetos e engenheiros.
Mais do que isso, a minissérie fornece voz e palco para os sobreviventes e famílias das vítimas que clamam por justiça e que entram e saem de tribunais buscando por paz. É necessário retomar a comoção social que a tragédia causou em 2013. Precisamos nos unir novamente à Santa Maria.
Precisamos falar sobre tragédias. Precisamos produzir materiais informativos. Precisamos manter viva a memória e a luta das famílias das vítimas e dos sobreviventes. Precisamos garantir que não iremos ligar para um ente querido para saber se ele sobreviveu. Garantir que a ganância e o poder não precifiquem nossas vidas. Garantir que não iremos construir mais memoriais em homenagem às vítimas de tragédias - porque elas não precisarão morrer.
Para que não se repita.
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